Zaire - Fiquei dominado pela tristeza por João Lourenço, em quem confio para criar para nós um verdadeiro país, tão grande é a sua missão, quando li a seguinte afirmação, muito oficial, no comunicado do MPLA, após os acontecimentos mortíferos em Cafunfo em janeiro deste ano: "Para além de que, quando se fala de assimetrias regionais, não devemos falar apenas do leste do país e por ser uma zona de produção de diamantes, até porque a principal fonte de receitas em divisas do país é o petróleo. No entanto há regiões produtoras de petróleo e que são pouco desenvolvidas, caso da província do Zaire”. Os observadores mais atentos denunciaram, alguns só com murmúrios, a qualidade medíocre do comunicado, por isso não quis perder tempo a comentar tanta falta de espessura intelectual num só documento. Mesmo que essa falta de profundidade intelectual tenha chegado a nos permitir ler esta enormidade: "Não é realista e justo pensar-se que, em apenas 45 anos, os sucessivos governos de Angola independente já deveriam ter feito a correcção dessas assimetrias, o que os portugueses foram incapazes de corrigir durante mais de cinco séculos. Roma e Pavia não se fizeram num dia”, que basicamente significa, “não podemos alcançar em 45 anos o que os portugueses não conseguiram em 5 séculos”.
Fonte: Club-k.net
O MPLA assume assim, muito claramente, que o seu único barómetro para medir o seu desempenho é o Portugal colonial, que fielmente substituiu. Vemos por estas linhas que este partido não tem, ou já não tem, um único cérebro bem treinado capaz de o fazer evitar afirmações preocupantes e perigosas. Estamos longe do MPLA da geração de Manuel Rui, que era mais subtil na forma, embora a substância fosse a mesma, e que pensava acima de tudo na boa propaganda e não em roubar o povo.
É, pois, óbvio que os redactores do MPLA não sabem que Portugal era nosso inimigo e que não tinha interesse em desenvolver o nosso país, Angola, além de construir estradas para transportar as matérias-primas e os bens que viera buscar no nosso país, bairros bem ordenados, com escolas e hospitais, para os seus soldados, colonos e as suas famílias. Como pode então o MPLA ignorar que comparar a sua actuação à frente do nosso país, desde a Independência, com a do Portugal colonial equivaleria a assumir uma contradição surpreendente para um movimento que afirma existir apenas para a felicidade do povo angolano? Ou, para reformular esta questão importante, porque me recuso a acreditar que neste grande partido todos os cérebros estão avariados, como tal absurdo poderia ser publicado oficialmente? Que distracção reina hoje neste movimento histórico para cair tão baixo de forma tão brutal e obtusa? Outra pérola? Aqui está: "nem mesmo Portugal pode hoje reivindicar, perante as autoridades angolanas, a existência de um protectorado seu, algures em Angola". No MPLA ninguém foi capaz de ver que o uso do "nem mesmo" diz implicitamente que Portugal é mais legítimo do que as nossas regiões ou qualquer filho de Angola quando se trata de reivindicar uma independência ou um "protectorado", pois nos imaginários dos novos ideólogos desse partido a ideia é concebível. Bom dia, tristeza!
Publiquei no jornal O País, em duas partes, um artigo intitulado "Os Bakongo, a Feitiçaria, a Discriminação". A primeira parte foi publicada a 30 de outubro de 2020 e a segunda parte a 6 de novembro de 2020. Quem ainda quiser compreender as profundas razões do desprezo histórico com que o MPLA sempre tratou os Bakongo e em particular a província do Zaire pode lê-los novamente. Na experiência entre os Bakongo de Angola e aqueles a quem o Colono legou o seu poder para continuar a sua obra, muito há a dizer. Os Bakongo, esse povo inteligente e pacífico, sabem tudo o que suportam no seu próprio país, eles pertencem a um velho povo sábio que não se deixa enganar por falsas cortesias. E quando me recordo da minha infância na terra natal, Mbanza-a-Kongo, tenho oportunidade, regularmente, de contar que desde a "partida" dos portugueses de Angola, o MPLA só conseguiu construir um único troço de estrada, de menos de 4km, e uma triste passarela que permite atravessá-la, no bairro de Nsongo, na direcção de Mbanza-a-Nkunga. Desde a época colonial, a minha terra natal sempre teve uma estrada principal asfaltada, que parte do seu único hospital, Vunda dya Nsaku, que tem menos de 100 camas e que também data da época colonial. Passa pelo centro da cidade construída pelos portugueses, para alojar as suas famílias e manter a segregação com os Indígenas, e continua em direcção a Mbanza-a-Nkunga, a pequena aldeia que atravessávamos primeiro, na minha infância, para sair da cidade e ir na direcção de Luanda. Nada foi feito por esta cidade desde 1975. O aeroporto é colonial.
A Cerâmica, a escola primária onde estudei na década de 1980, também é uma construção colonial. Mas o mundo inteiro, especialmente fora de Angola, visto que a história de Angola é mais conhecida no estrangeiro e pelos estrangeiros, ainda se lembra que um dos filhos ilustres desta terra quis, já no século XVI, realizar grandes obras para erguer em Mbanza-a-Kongo o que existe hoje em Roma ou em Paris. Na sua época, o bem comum não era roubado e a grandeza de um líder era medida pela sua capacidade de servir ao seu povo. Como então é possível, uma alma inteligente sem dúvida ficaria espantada, que assim seja hoje na capital da província do nosso país que nos fornece a maior quantidade de petróleo que nos sustenta e que enriqueceu todos os ladrões do MPLA, os seus bons filhos e amigos estrangeiros?
Mas o MPLA ainda espera que os filhos do Zaire cantem louvores para ele. Até quer ler a adoração nos seus olhos. Hoje, as vozes dos naturais desta província levantam-se com razão para denunciar o desprezo histórico de que sofrem. Querem entender porque são sempre esquecidos no anúncio de projectos, como recentemente a construção de centralidades. Não querem mais abaixar a cabeça como os seus pais, que durante muito tempo o complexo e as discriminações do MPLA amordaçaram e humilharam pela intimidação. Desde que os ideólogos do MPLA receberam do Colono português a sua versão da valente resistência do reino do Kongo contra Portugal, que voluntariamente modificaram e manipularam para criar para o MPLA uma angolanidade e uma legitimidade exclusivas na nossa história política interna, muito recente e irrisória em comparação com o nosso percurso como um povo. Os olhos dos filhos do Zaire olham nos olhos do MPLA, como tochas, e perguntam-lhe onde está o decreto que estipulava que uma percentagem das receitas do petróleo devia ficar na província produtora.
A estas vozes em ascensão, ouvimo-las na semana passada, sobretudo nas redes sociais, e que apelam a ir exigir mais justiça, durante uma manifestação marcada para amanhã sábado, o Presidente João Lourenço, que concordou em assumir o slogan revolucionário “Melhorar o que está bem e corrigir o que está mal", deve dar ouvidos atentos. Essa injustiça contra todos os Bakongo, conheço-a de perto, não me foi contada. E não é verdade que os do Zaire aceitam tudo, a sua voz é abafada, é diferente! Escutem "Ntoyo", uma música reveladora e profunda do genial Teta Lando, vão entender.
Ricardo Vita é Pan-africanista, afro-optimista radicado em Paris, França. É colunista do diário Público (Portugal), cofundador do instituto République et Diversité que promove a diversidade em França e é empresário.
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