Luanda - Professor catedrático da Universidade Agostinho Neto (UAN), em entrevista a este jornal, Raul Araújo está inquietante com a banalização da CNE, diz que o combate à corrupção não é tarefa exclusiva do PR e defende a introdução de novas temáticas no ensino do Direito em Angola.
*Agostinho Rodrigues
Fonte: Vanguarda
Há avanços e recuos com o Novo Código Penal?
Entendo que há muitos avanços porquanto temos um Código Penal mais moderno e mais consentâneo com os princípios e normas da nossa Constituição. Quanto a recuos, não os vejo.
E o copo de vinho como factor de prisão para os condutores chamou-lhe atenção?
A legislação aprovada está em conformidade com a nossa situação actual que, infelizmente, não é boa. Muitas pessoas insistem que devem beber e conduzir e os resultados estão à vista: centenas e centenas de acidentes nas estradas e a maior parte deles deve-se ao facto de as pessoas consumirem álcool e logo a seguir conduzirem. Essas pessoas estão a por em perigo a vida de terceiros e a sua. Por esta razão concordo que a medida adoptada de tolerância zero ter sido a mais adequada.
Como caracteriza o Estado de Direito e Democrático no País aos nossos dias?
O nosso país comemora no próximo dia 6 de Maio o 30.º aniversário da formalização constitucional do multipartidarismo, primeiro passo para a edificação de um Estado Democrático de Direito, com a aprovação da Lei 12/91, de 6 de Maio.
Por razões conhecidas, logo a seguir às eleições de 1992 o País entrou numa nova guerra civil que se prolongou até ao dia 4 de Abril de 2002.
Feitas as contas temos, efectivamente, 19 anos de paz. Só a partir dessa altura foi possível iniciar, em paz, o processo de transição democrática. A aprovação da Constituição de 2010 foi um dos principais marcos jurídico-políticos para se começar a concretizar os princípios estruturantes de em Estado Democrático e de Direito.
Respondendo directamente à questão que me coloca, digo que o que caracteriza o nosso Estado Direito e Democrático, neste momento, é a sua puberdade.
O Tribunal Constitucional não legaliza partidos há dez anos. Este procedimento é comum em democracia?
A democracia não se mede com a quantidade maior ou menor de partidos políticos existentes num determinado País.
Angola tem eleições multipartidárias desde 1992 e quantos partidos políticos tiveram assento parlamentar até hoje?
Vejamos alguns dados: em 1992 tiveram assento parlamentar 12 (doze) partidos e coligações de partidos políticos; em 2008 apenas 4 (quatro) partidos políticos estiveram representados na Assembleia Nacional; em 2012 foram 5 (cinco) partidos e coligações de partidos políticos e em 2017 foram, igualmente, 5 (cinco) partidos políticos.
De entre estes partidos políticos apenas 4 (quatro) estiveram assento parlamentar em todas as eleições realizadas em Angola (MPLA, UNITA, PRS e FNLA). A CASA-CE entrou para a nossa agenda política recentemente e teve assentos parlamentares em 2012 e 2017.
Quantos partidos e coligações de partidos políticos foram extintos em Angola desde 2008 por não reunirem as condições para se manterem como partidos políticos?
Os dados estatísticos falam por si.
Se quisermos fazer um estudo comparado com outros países podemos fazê-lo. Quanto partidos políticos têm tido assento parlamentar no Parlamento na África do
Sul desde que houve as primeiras eleições livres e justas naquele país?
Esta é uma parte da resposta à sua pergunta.
Os candidatos não preenchem os requisitos?
Do que tenho conhecimento o Tribunal Constitucional não tem legalizado novos partidos políticos porque os candidatos não têm preenchido os requisitos legais.
Pelos dados estatísticos anteriormente apresentados não me parece que nos próximos anos venham a surgir novos partidos que tenham possibilidades de afirmação política mas vamos aguardar para ver.
Urge repensar o modelo de constituição de partidos políticos no País, tendo como exemplo os chumbos ao PRA-JA Servir Angola?
É a Assembleia Nacional que aprova a legislação sobre os partidos políticos competindo ao Tribunal Constitucional aplicar a lei. Se esta for alterada e se tornar mais permissível é possível que surjam novos partidos políticos.
O que deve ser alterado ao nível do ensino do Direito em Angola?
O ensino de Direito em Angola enferma de dois tipos de problemas: uns que são comuns ao ensino geral e outro que é específico ao curso de direito.
Em relação ao primeiro caso entendo que temos de fazer uma “revolução” no nosso ensino pré-universidade, que inicie no ensino pré-escolar e se estenda ao ensino secundário. Há que apostar seriamente na qualidade do ensino e na sua democraticidade. Qualidade em todo o sistema de ensino, principalmente no ensino público. Democraticidade porque não pode ter ensino de qualidade apenas no sistema de ensino privado. É obrigação do Estado assumir as suas responsabilidades e prestar um ensino de qualidade a maioria da nossa população.
No tocante ao ensino ao Direito…
Em relação ao ensino do Direito penso que se deve modernizar e torná-lo mais competitivo com a nova realidade global. Deixar de ser demasiado formal e clássico e introduzir cadeiras mais consentâneas com o mundo existente e com a nossa realidade. Por exemplo, disciplinas como o Direito Digital, Direito Costumeiro, etc., deviam ser estudadas na formação de base do curso de direito.
A revisão ordinária da Constituição está na ordem do dia. Acha que o PR passou à margem de temas fracturantes, como por exemplo a eleição directa do PR, a separação das eleições, a paridade na CNE?
Parece-me que o Presidente da República pretendeu, apenas, fazer uma revisão pontual à Constituição e não uma profunda revisão à nossa lei fundamental.
A qualquer momento os Deputados podem, nos termos estabelecidos na Constituição, decidir fazer essa reflexão mais profunda da Lei Magna.
Não se pode esperar é que seja apenas o Presidente da República a ter essa iniciativa. Ele não se substitui ao Parlamento nem aos Deputados.
O artigo 233.º da Constituição atribui ao Presidente da República e a 1/3 dos Deputados em efectividade de funções a iniciativa de revisão constitucional. Cada um que faça a sua parte e tudo funcionará de forma tranquila.
Quanto aos aspectos eleitos pelo Presidente da República presumo que sejam os que constituem a sua preocupação e se enquadram na sua agenda política.
Enquanto constitucionalista, qual é o modelo de eleição do Presidente da República que defende?
Enquanto constitucionalista qualquer modelo de eleição do Presidente da República serve desde que seja coerente e democrático.
Enquanto cidadão gosto mais de um modelo que seja mais próximo do clássico sistema de governo presidencial em que exista uma separação da eleição presidencial e da eleição parlamentar.
Dos clássicos modelos de Constituição que existem, ao seu ver, qual deles se adequa ao contexto político de Angola?
Cada país deve seguir o modelo que mais se adequa à sua realidade sócio - política, cultural e religiosa. Não há modelos óptimos de “constituições pronto-a-vestir”.
A história já nos ensinou que querer impor modelos mais ou menos democráticos não resultou. Temos muitos exemplos negativos: por exemplo, na Hungria e na Checoslováquia, no tempo da Guerra Fria, no Iraque e na Líbia mais recentemente.
O que importa são a coerência dos princípios democráticos e de um Estado de Direito. Estes princípios devem estar em conformidade com as realidades sócio-políticas e culturais existentes em concreto. Já se pensou e estudou, por exemplo, por que razão é que em muitos países africanos as eleições são sinónimo de conflito pós-eleitoral e muitas vezes acabam em guerras civis? Vamos dizer, como muitos, que os africanos não estão preparados para a democracia ou que é apenas um problema resultante da ambição dos líderes africanos que “são corruptos” e que se querem manter no poder de qualquer forma?
A situação é muito mais séria do que este tipo de afirmações e devemos é preocupar-nos em estudar a sério estas situações. Este é o papel que as universidades devem desempenhar.
No âmbito da revisão constitucional, é possível existir separação de poderes quando o presidente de um tribunal superior faça parte do Conselho da República?
O Centro de Estudos de Direito Público e Ciências Jurídico-Políticas da Universidade Agostinho Neto, que tenho a felicidade de presidir, produziu um Memorando sobre esta matéria disse, de forma clara, que não concorda com a situação actualmente existente nem com a proposta apresentada.
Qual é a discórdia?
O Conselho da República é um órgão de natureza consultiva do Presidente da República (artigo 135.º da Constituição). A Constituição atribui ao Presidente da República poderes e competências enquanto Chefe de Estado (artigo 119.º), Titular do Poder Executivo (artigo 120.º), nas Relações Internacionais (artigo 121.º), enquanto Comandante em Chefe (artigo 122.º) e em matéria de segurança nacional (artigo 123.º). São poderes em matéria política e administrativa. Não vejo em que medida os presidentes dos tribunais superiores podem aconselhar o Presidente da República em assuntos de natureza política, por exemplo.
A única razão que encontro que pode justificar a situação actual é, por um lado, a reminiscência do sistema político passado de partido-estado e, por outro lado, o factor subjectivo de quem não está perto do “Chefe” não tem poder real.
Para além da criação de um círculo eleitoral na diáspora, que zonas cinzentas o inquietam na revisão ordinária da Constituição?
Defendo que à semelhança do que estava consagrado na Lei Constitucional de 1992 se crie um círculo eleitoral da diáspora. Naquela altura estava previsto que esse círculo eleitoral tivesse 3 (três) deputados, sendo 2 (dois) de África e 1 (um) do resto do mundo. É uma base de reflexão.
Está de acordo com a hierarquização no sistema jurisdicional atribuído maior relevância ao tribunal superior em relação aos demais superiores?
A proposta apresentada pretende atribuir ao Tribunal Supremo um papel de maior relevância em relação aos outros tribunais superiores é infeliz e não faz qualquer sentido.
A nossa Constituição, no seu artigo 176.º , estabelece que o sistema jurisdicional em Angola é composto pelo Tribunal Constitucional, o Tribunal Supremo, o Tribunal de Contas e o Supremo Tribunal Militar. A jurisdição comum é encabeçada pelo Tribunal Supremo e integra os Tribunais da Relação e os outros Tribunais (Tribunais de Comarca) e a jurisdição militar é encabeçada pelo Supremo Tribunal Militar e integra os Tribunais Militares de Região.
O Tribunal Constitucional tem como competência administrar a justiça em matérias de natureza jurídico-constitucionais (artigo 180.º) e o Tribunal de Contas é o órgão supremo de fiscalização da legalidade das finanças públicas e de julgamento das contas públicas (artigo 182.º).
Por sua vez o Tribunal Supremo é a instância superior da jurisdição comum (artigo 181.º) e o Supremo Tribunal Militar é o órgão superior da hierarquia dos Tribunais Militares (artigo 183.º).
Há confusão conceptual…
Cada um destes tribunais tem uma jurisdição própria e nem mesmo o Tribunal Constitucional que é o único tribunal que em matéria jurídico-constitucional pode revogar decisões de outros tribunais superiores é hierarquicamente superior aos outros.
Há aqui muita confusão conceptual mas que reflecte problemas subjectivos existentes.
Na sua óptica, porquê os artigos 176º, o 37º e o 184º suscitaram apreensão da comunidade académica?
As propostas apresentadas a que se refere tratam de matérias distintas. A apreensão manifestada deveu-se ao facto de se entender que há necessidade de se repensarem nas propostas apresentadas porque as mesmas não foram felizes nem reflectiram um estudo sério sobre os assuntos em causa.
Corrobora da opinião de que se o artigo 184º não for alterado, vai representar uma verdadeira reestruturação do sistema judicial?
A minha posição é simples. A proposta revela um preocupante desconhecimento do que é o sistema jurisdicional e do seu papel. O que se propõe não é a reestruturação do sistema judicial mas o retorno ao sistema unificado de justiça com uma agravante: na Lei 18/88, de 31 de Dezembro, o sistema de justiça tinha na sua vértice o Tribunal Supremo e agora propõe-se que seja um órgão administrativo a fazer esse papel. Ou seja, um órgão administrativo a mandar no sistema judicial. Enfim...
O presidente do Tribunal Supremo é por inerência de função, igualmente, o presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial. O presidente do TS não deve ser ao mesmo tempo da Magistratura Judicial?
Concordo com o actual modelo que prevê essa acumulação de funções em que do presidente do Tribunal Supremo é, por inerência de funções, o Presidente do Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ). Esta solução é a mesma em relação ao Ministério Público em que o Procurador-geral da República é, por inerência de funções, o presidente do Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público.
Esta solução vigora em vários países que têm modelos de organização judiciária similares ao nosso. A ideia é a de se dar coerência ao sistema e evitarem-se conflitos institucionais entre os órgãos.
Acho que o problema não reside nesta acumulação de funções mas na necessidade de se repensarem algumas situações que vivemos. Por exemplo, acho que o sistema de mandatos de todos os presidentes dos Tribunais Superiores deve ser alterado e tornar-se mais democrático e menos conflituoso.
Os mandatos são questionados…
Defendo que se devem adoptar mandatos de 2 (dois) anos rotativos e não os actuais de 7 (sete) anos.
Na actualidade os magistrados que são designados para presidentes dos Tribunais Superiores ficam um mandato inteiro afastado da sua função principal de magistrado judicial que é a de julgar. Ou seja, ficam 7 (sete) anos apenas com funções administrativas, exceptuando-se os casos em que presidem as sessões plenárias dos respectivos tribunais para decidirem processos que lhes são submetidos.
Que vantagens há quando pede para clarificação da terra como propriedade das comunidades?
Há necessidade de se assegurar a posse e propriedade das terras pelas comunidades para a sua protecção e evitarem-se os abusos que têm existido ao longo destes anos. Parece-me é que a solução proposta não foi a mais feliz.
O que quer que seja acautelado neste quesito?
Entendo que se deve encontrar um modelo equilibrado que salvaguarde vários factos: a defesa do interesse das comunidades, o interesse do Estado e a garantia de que se possam fazer investimentos sérios que produzam desenvolvimento ao País.
Raul Araújo desistiu do concurso público curricular para a escolha de um juiz conselheiro para provimento de presidente da CNE. Não está arrependido da decisão depois do recurso de inconstitucionalidade ao TC por alegados vícios graves ao referido concurso?
O meu único arrependimento foi o de ter apresentado a minha candidatura. Entendo que a Comissão Nacional Eleitoral é um órgão demasiado sério e com muitas responsabilidades para estar a ser banalizado e a ser posta em causa por interesses pessoais que em nada têm a ver com o seu objecto.
Em relação ao último concurso público para presidente da CNE, que já terminou, tem sido marcado por muita polémica que tem a sua razão de ser em questões não jurídicas. Neste momento só não haveria polémica se o candidato vencedor fosse a pessoa que pensa que é o candidato “natural”. Qualquer outro candidato seria posto em causa mesmo que se fizesse um outro concurso público.
Tal como disse na altura, o facto de se ter pactuado com situações não sérias no início prejudicaram o processo eleitoral e as consequências estão à vista.
Sinceramente não me consigo imaginar num cenário como aquele que se vive neste momento.
Hoje para além do candidato que contesta o referido concurso, o presidente da CNE é contestado por todos os partidos na oposição por alegada falta de idoneidade moral… Quer comentar?
A oposição contesta a composição da CNE e neste momento qualquer que seja a solução irá merecer o desacordo desses partidos políticos. Hoje é o actual o presidente da CNE amanhã indique-se outro e a situação será a mesma.
Quanto à falta de idoneidade moral o melhor é não atirar pedras para o telhado dos outros quando o nosso é de vidro.
Moçambique elegeu um bispo anglicano como presidente da CNE. Para lisura e transparência das eleições em Angola permanentemente contestadas, que modelo define para restruturação de uma CNE consensual para toda a sociedade?
Temos de saber o que se pretende no nosso país. Foi a Assembleia Nacional, por sugestão dos partidos da oposição, que definiu que o presidente da Comissão Nacional Eleitoral, das Comissões Provinciais e Municipais Eleitorais deviam ser magistrados judiciais. Agora já não se quer esta solução.
Será que a indicação de um bispo ou pastor iria resolver o problema? Tenho sérias dúvidas.
Acho que para além da eventual discussão sobre a composição deste órgão se deveriam tomar medidas que tornassem a actividade da CNE a mais transparente possível para que não houvesse tanta contestação dos resultados eleitorais.
Há que tirar lições das eleições até aqui realizadas?
Se depois da realização dos actos eleitorais de 2008, 2012 e 2017 continua a haver tanta contestação é porque alguma coisa não está bem. Então o melhor é que os partidos e coligações de partidos políticos com assento parlamentar conversem, se oiçam as opiniões dos outros partidos sem assento parlamentar, de outras instituições sócio - profissionais, religiosas, da sociedade civil e do poder tradicional e se tomem decisões que tornem as eleições gerais de 2022 menos controversas. Afinal as eleições e a democracia não são monopólio dos partidos políticos.
O jornal Correio da Manhã indica que a Justiça portuguesa, através do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, entregou a Angola a lista das fortunas que vários cidadãos angolanos detêm naquele país. Este é um indicativo de que o combate à corrupção não tem retorno?
O Senhor Procurador - geral da República já disse que em Angola não se receberam quaisquer listas de fortunas e eu faço fé nas nossas autoridades.
Quanto ao combate à corrupção e à impunidade entendo que deve ser assumida por toda a sociedade. Não faz sentido pensarmos que este é assunto exclusivo do Senhor Presidente da República, da Procuradoria-geral da República e da Polícia Nacional.
Todos os cidadãos e instituições deviam ter como prioridade esse combate para que o País não tornasse a viver a situação que viveu e que ainda vive em que algumas pessoas se apoderaram de maneira vergonhosa do erário público fazendo com que a miséria e a fome se instalassem no País.
Acho que todos os angolanos estão de acordo que se devem tomar medidas preventivas e punitivas para que o País se possa desenvolver e crescer com normalidade.
Faz algum sentido os que advogam de que há selectividade no combate ao crime do colarinho branco?
Não me parece que haja selectividade. Os processos judiciais têm o seu percurso próprio e é possível que uns andam mais rápido que os outros, de acordo com a sua complexidade.
Não me parece é que seja positivo querer-se politizar a acção da justiça e particularmente dos tribunais. Estes são a grande garantia da funcionalidade de um Estado Democrático de Direito. Se deixamos de acreditar nestes órgãos então estamos numa situação muito complicada.
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