Huambo – Sou professor Diplomado. Tenho número de agente e o número de CIF. Assinei a minha “Guia de Início de Funções” em Fevereiro de 1999 e colocado no Município do Lobito, na Comuna da Hanha-do-Norte com mais 4 colegas…Porém, cedo abandonei a docência e o sector de Educação precisamente em 2002.
Fonte: Club-k.net
Antes de abandonar o Sector de Educação fui Director de uma escola do II e III Níveis na Comuna da Hanha-do-Norte no Lobito/Benguela. De dia na sala de aulas leccionando várias cadeiras; de noite nas bananeiras fugindo ataques em tempo de guerra, e saliente-se que a Hanha-do-Norte padecia de seca e fome gerais. E, não havia quartos de banhos; as bananeiras eram também lugar de retretes do povo.
Então, fugindo aos ataques passando a noite nas bananeiras já sabem onde eu com meus cobertores velhos, andrajosos e sujos rebolava como suíno nos dejectos humanos...
Alimentava-me de comida sempre oferecida pelos pais dos alunos e pelo administrador comunal de que era meu aluno e o comandante da policia e o da Defesa Civil também meus alunos que sempre tinham comida e eu tinha sempre fome mas era chamado com respeito " Senhor professor" mais tarde “Senhor Director”. Tinha apenas 19 anos de idade e era o mais velho do grupo porque a única menina (professora) tinha 17 anos de idade e os outros 3 tinham 18 anos de idade. Então eramos menininhos que não infundiam nenhum respeito ou temor que não fosse a impressão de que desde a Criação do Mundo aquela comuna nunca tinha recebido Técnicos Médios e agora eis o milagre…!
A maior parte dos professores encontrados, eram professores do TEP sigla em Inglês que significava Pacote de Emergência para Professor, um tipo de professor que tinha como habilitações literárias a 4ª classe mas dava aulas também na 4ª classe, 3ª classe; e por sua vez professor com habilitações literárias 3ª classe dava aulas na 2ª classe, 1ª classe e Iniciação. São eles que eram “Combatentes da Linha da Frente”. Nessa altura a actual Ministra da Educação, Professora Luísa Grilo era Directora Nacional de Ensino Geral e o Ministro era o Professor Burity da Silva.
Quando desembarcamos como Técnicos Médios da Educação eramos olhados como se tivéssemos vindos de outro planeta…a novidade cedo se espalhou nos bairros poeirentos e arenosos da Hanha-do-Norte e alguns jovens e velhos nem se quer venciam sua natural timidez para se aproximar de nós a fim de nos cumprimentar com boas-vindas. A diferença de classes sociais pareciam essa diferença entre o Presidente da República e os professores primários.
Mas não tardou para a fome da falta de salário vir a deixar cair a nossa máscara da pseudo-grandeza. Afinal fomos sustentados pelos professores do TEP que tinham fuba e nós Técnicos Médios sem salários todo mundo alunos, pais e colegas da primária tinham pena de nós no lugar de respeito. Confirmamos o que dizia a Bíblia de que “a Sabedoria do Pobre não é respeitada”.
Um Técnico Médio de Educação, ou da Agronomia ou da Saúde para eles era quase um mito, acorria a seu encontro para resolver todo o tipo de problema da Comunidade que nós, na ADPP (Ajuda de Desenvolvimento de Povo para Povo) ou seja “Humana People to People”, havia aprendido muito bem na disciplina de líderes da comunidade, chamada “Segunda Cabeça do Professor”, ou seja o professor tem que ser dotado de duas cabeças das quais: uma na sala de aulas a lecionar e a outra cabeça na comunidade a resolver os problemas do povo…neste último ponto, participávamos nas actividades dos sobas, dos curandeiros, nos rituais, éramos convidados para actividades das igrejas, éramos promotores de saúde comunitária e teríamos sido empreendedores se tivéssemos capital inicial.
Na teoria, já havíamos agendado que com nossos primeiros salários iriámos abrir pequenas panificadoras, pequenas lojas e botequins mas ironia do destino o salário viria com Nosso Senhor Jesus Cristo na sua Segunda Vinda ao Mundo porque neste mundo do Governo angolano, o Professor pode-se-lhe prometer o céu e a terra nos Memorandos de Entendimento mas cumprir o Memorando são outros “quinhentos” ainda lá na Hanha-do-Norte era obrigatório ser do Partido da Situação de que eu era dirigente local em tempo de guerra…
O nosso primeiro ano lectivo começou em Fevereiro e eu só recebi o primeiro salário (7 meses acumulados) no final do exame. Com o respetivo salário comprei um par de sapato “quadrado” de marca Miguel Vieira que usei no festival de outorga de Diplomas e o resto do salário nunca mais veio.
Desse salário de 7 meses só chegou mesmo para comprar um (1) pare de sapato sem peúgas, uma máquina fotográfica amadora quase plástica e perto de 70 tábuas de peixe sardinha seco que mandei para os familiares no Huambo, para mostrar que eu era professor do litoral onde há peixe e 10 kg de sal grosso sem iodo... Olha que nem sobrou dinheiro para comprar pelo menos detergente.
Então se o salário só veio no fim do ano lectivo, como é que nos sustentamos ao longo do ano? Eu fui fotógrafo amador e tirava fotografias e as pessoas pagavam-me qualquer coisa…para comer. Geralmente tinha sempre roupa amarrotada, a cara empapuçada de desnutrição; apenas tinha 2 pares de sapatos velhos durante todo o tempo lectivo.
Fazia também trabalho na comunidade e o mentiroso governador de Benguela, na altura Dumilde das Chagas Rangel prometeu-me um carro que até que morreu nunca deu e me propôs ser administrador da tal comuna mas sem salário, aceitei o cargo sem nenhuma remuneração...
Apenas um admirador meu Mais Velho Luís, um cabo-verdiano do Lobito, que era gerente da fábrica de óleo de palma, ensinou-me a conduzir tractor que nem arranque tinha, com volante cheio de folga sempre me arrastava para o mato; e para mim pegar no volante manual daquele enferrujado tractor, sobrevivente da 1º Guerra Mundial, era o ápice do orgulho e felicidade; era o sonho a se realizar e sempre que eu gingava lutando com aquele tractor aliviava a dor da falta de salário e pensava comigo mesmo: “Embora a tal merda de salário não venha, se pelo menos Deus me ajudar a aprender a guiar tractor, isto já vai compensar e não tenho mais nada a reivindicar...”
Enquanto professor, o meu mundo é tão limitado, quanto limitado o meu sonho; então tocar no volante daquele envelhecido tractor que roncava mais que um tanque de guerra muito antes de mover um pneu, no geral eu por cima dele, tremia como possesso, dados os pneumáticos serem desiguais e uns mais gastos que outros e cheios de protuberâncias que ao andar praticamente manga (coxeia); mas chegar mesmo a conduzi-lo era sonho também de outro Planeta.
Mas é assim mesmo, a maior parte dos professores de Angola, sobretudo do subsistema do ensino não universitário, que até hoje ostentam 40, 30, 20 anos de carreira, mas nunca tocaram no volante dum veículo, nem velocípede sem motor, porque o salário deles não é para sonhar veículos apenas um pouco de ovos misturados com areia…e chá de cedro ou “ndembi”.
Conheço professores que se chegar em casa com saquito de pães vindo da Padaria, os filhos vão perguntar ao pai se o Natal foi antecipado…leite mesmo é que os professores principalmente primários e funcionários administrativos desde que foram desmamados pelas suas mães nunca mais saborearam o mel branco porque leite pertence aos trabalhadores das Finanças e da Sonangol.
Voltando ao meu tractor, aquele tractor em toda a comuna era o único meio de transporte que fazia taxi Lobito-Hanha, levando passageiros e invariavelmente a mercadoria era carvão vegetal que o povo levava para Lobito para vender. Eu mesmo na qualidade de Director da Escola, professor e Vice Administrador Comunal para a Esfera Económica e Social, também para comer tinha que vender carvão, pessoalmente chegava no Lobito pintado a carnaval devido a poeira que dimanava dos sacos de carvão mas dele dependia o próximo jantar por isso vaidade eu já não tinha e para que teria? “Luxo na miséria”?
Na renovação de mandatos do Partido virei 1º secretário do partido na Comuna mas sem salário... a moda do MPLA... pelo brio e eloquência, sagacidade e de quando em quando sofismas e bajulação, rapidamente a proposta veio para que eu me preparasse no fim do ano lectivo para sair a minha nomeação para administrador do município do Bocoio mas sem salário; apenas dependeria do salário vindouro da educação que demorava mais do que a Segunda Vinda do Messias. Não aceitei mais e não neguei para não ser perseguido e fiquei indiferente e indefinido eternamente…
Enquanto Director da escola do II e III Níveis, Vice-Administrador da Comuna e professor de tantas disciplinas incluindo Desenho (EVP) e até de Inglês tinha a obrigação de estar presente nos julgamentos tradicionais do soba, tinha que estar presente nas reuniões dos serviços secretos, tinha que estar presente nas reuniões tácticas da tropa para fazer reconhecimento (recto) nas florestas circundantes, mas sem salário (professor feito sopa de todos os legumes mas sem nutrientes).
Havia uma professora do TEP que com sua 4ª classe era também professora da 3ª e 4ª Classes e era nossa aluna da 5ª Classe. Stora Justina! E, nós carinhosamente a chamávamos de Man-Ndjussta. Todos os santos dias cozinhava para nós um fungi invariavelmente com folhas de aboboreiras (lombi) olha que o sabor que tinha aquele simples pirão com folhas verde parecia no pirão de farinha de milho concentrava o sabor do bife, do bacalhau, da pizza, do hambúrguer, do churrasco, do macarrão e de todos os saborosos manjares de que o Presidente da República e seus colaboradores despejavam sobejamente enquanto aos professores os mendigam nos 4 ventos e que ninguém lhes dá. Mas porque que no pirão tinha sabores fantasmagóricos e variados? Porque era a única comida que ofereciam e eles não tinham também outras alternativas. Graças a Deus o Governo angolano como sabe mesmo que votou fome ao professor, felizmente os livros escolares não falam nem de segurança alimentar, nem de nutrição…
A Man-Mdjussta nos sustentou até que um dia desgraçadamente nossa felicidade terminou. E terminou, precisamente, quando o marido da Professora nossa benfeitora, por ciúme proibiu-a de cozinhar para nós. Eu mesmo fui a vítima, o marido da Man-Ndjussta era Comandante da Segurança do Estado na Comuna e era um antipático, rude, 2,20 metros de altura, corpulento como elefante, barbudo como Ossama Bin Laden, rigorosamente fardado, típico de um militar rijo… o que lhe tornava num gorila muito atraente em tempo de guerra porque personificava Idi Amin Dada.
Nunca me olhou com bons olhos. Pensava que a dedicação que a Professora tinha em nos alimentar escondia um afecto e uma paixão a desabrochar. Sendo especialista do silêncio e da fofoca, acabou acusando-me publicamente de que sua mulher estaria trai-lo com um dos Técnicos Médios e havia fortes indícios de que o Director seria o sujeito da traição. Aquilo piorou a nossa desgraça que nunca mais provamos aquele pirão com verdura que a nós tanta falta fazia…já passamos várias noites à fome, por isso e os meus colegas nunca me perdoaram pelo desfecho infeliz…
Era também professor de Biologia na 8ª Classe. No capítulo da genética, ao falar das células procariotas, falava de proteínas, falava de sacarose, falava de lípidos, falava de glícidos. Quando os alunos me perguntassem, o exemplo de sacarose, eu respondia: “é a doçura da cana que vocês têm na lavra e já mastigaram cana? Eles em uníssimo sim proooofe” eu não poderia falar para os alunos da zona rural sobre existência de açúcar, principalmente no meio do ano porque criaria saudade do Natal. Porque açúcar, os professores só conseguem na quadra festiva…e iria prejudicar a concentração dos alunos.
Porque já aconteceu com a professora ANA quando era professora estagiária (comigo) em Caxito, na escola primária do Sassa-povoação, a dar aula de matemática, na 1ª classe desenhou banana no quadro com giz amarelo e a banana parecia real. Uma das alunas faminta explodiu a chorar exigindo que a professora lhe desse banana. Para consolá-la, a professora cometeu o pior erro pedagógico: amarrou a criança às suas costas como se fosse seu bebê.
Os alunos todos da turma descobriram que a coleguinha, estando nas costas da professora, estava sendo privilegiada; então toda turma levantou-se gritando para que em busca de igualdade todas duma vez ou uma por uma montassem às costas da professora, acusada de separatista e aquilo estragou a aula! E a professora ficou reprovada no exame de prática escolar…. Só o professor sabe as peripécias em que passa na sala de aula e não lhe pagando bem e muito bem é pecado e crime.
Regressando na minha Hanha-do-Norte. Aos meus alunos da 8ª classe já não era muito complicado falar-lhes de proteínas. Quando me perguntassem o que são proteínas eu simplesmente dizia que é “a força que você terá sempre que tiver a possibilidade de comer uma banana”.
Comer banana em Angola, para os professores é uma questão de possibilidade e sorte porque não é efectivamente dada que do seu salário, com dívidas acumuladas ainda lhe sobre luxo de ter a banana como sobremesa. Graças a Deus nós na Hanha-do-Norte víamos duas espécies de frutas: banana e dendém. Então não se poderia falar de outras frutas porque não conheciam. Como ninguém na Comuna tinha televisor, em toda comuna não havia nenhum Televisor. Se assistissem aos filmes conheceriam a laranja ou limão pelo menos.
Então o mundo do kamuhanhã se reduzia em 3 produtos: carvão, banana e dendém. De vez em quando uma mão caridosa nos oferecia um cacho de dendém. Banana não nos davam, era cara e para os donos da área porque era o orgulho local. O que era banana para o Kamuhanhã é o que é Kuduro para o Nagrelha, não se dá ao elemento estranho porque “ é muito dele”.
Nunca tivemos facilidades de acesso ao sabão, sabonete ou perfume, seria apenas nos filmes e não na vida real do Professor que teria que banhar pelo menos duas vezes ao dia mas nós nadávamos no rio Kuvale que atravessava a vila do sentido este-oeste e desagua na Hanha-da-Praia. Naquela época então nada mais tínhamos senão os nossos volumosos papéis e giz.
Uma vez dessa, o meu aluno predilecto Maurício, ofereceu-nos 4 “tábuas” de peixe corvina seco. Como professor juro que daquela vez foi a primeira na minha vida saborear um peixe diferente de sardinha (lambula) ou vimbelele (cabuenhas). Aquelas 4 tábuas antes de começarmos a comê-las tivemos que fazer uma reunião de planificação da gestão daquele peixe. Aquele peixe nem parece veio do mar, raríssimo bem, parece que caiu do céu directamente para as nossas rugosas mãos. O nosso colega charlatão, Jorge Laton que se fazia de vidente disse que sonhara na véspera com tamanha oferta e que seus já idos, terão conduzido Maurício a proceder a tal oferenda.
A professora Sipopy, minha colega olhou longamente no calendário esquadrinhando alguma data festival para que fosse a razão de comermos a corvina. Porque comê-la em dias comuns para o nível de professores, seria ou escândalo insano ou então sacrilégio. Professor comer corvina? Isto seria anormal e muitíssimo estranho. Peixe dele é cavala ou sardinha, ou kabwenhas…Corvina pertence ao pessoal da SONANGOL e das Finanças.
Acaso o professor angolano já ouviu falar de fígado de vaca (jardineira ou isca)? Não, os professores rurais talvez o seu lauto banquete é pirão com verdura e se for carne deve ser um rato assado ou gafanhotos. Como o professor não rouba então nunca vai provar frango.
Deputado consegue Corvina, Liro, Lobalo, Abrotea, Atum, Cherne…mas o Oceano do professor só abunda lambula, kabwenhas e Cavala… Se o Ministério quisesse nos brindar com corvina melhoraria nosso salário e pagar-nos-ia a tempo. Ironicamente o próximo feriado estava há mais de 3 meses e sendo assim guardar essas “tábuas” de peixe corvina, que o Maurício, cujo pai era pescador do Egipto-Praia, a norte da Hanha paralela a Canjala (litoral) então na nossa casa infestada de ratos, baratas, lagartixas, aranhas, gigantes, salamandras, centopeias, não poucas vezes acordávamos enterrados com a terra cavada por toupeiras, assim não havia condições de conservar o peixe corvina esperando por ocasiões especiais, tínhamos que comê-la naquele mesmo dia…a casa era de terra-batida, poeirenta, e nós dormíamos como troncos de imbondeiros deitados a mercê dos mosquitos porque nunca ouvimos falar de redes mosquiteiros.
Mosquiteiros professores não conseguem comprar, são caros demais…dormindo numas duas esteiras com buraco no meio, já acastanhadas e carcomidas pelas carapaças, percevejos, e as já aludidas ratazanas, mas era oferta dos encarregados de educação, já que o MED não criou casas de passagem dos professores lá na zona rural. Fomos entregue a Deus proverá… tivemos que comer nossa corvina em forma de sopa porque nem sequer tínhamos fuba para acompanhar o pirão, era apenas ferver o peixe e comer como se estivéssemos a tragar favas…mas só de imaginar que estamos a comer corvina já a autoestima aumentou e no seu inanimado a nossa cozinha admirou ver algo estranho como a corvina.
Fui ao Lobito, na qualidade de chefe do Grupo (Director) fui então mendigar ao PAM (Programa Alimentar Mundial) do Lobito para nos ajudar com algum mantimento. Quando eu disse que sou Director do II e III níveis e falei isto em Inglês quase perfeito, ao Chefe do PAM, um Americano loiro, grandalhão, ele sorriu para mim com ar de família e admiração. Depois disse-me que a reserva de fuba, lentilhas, óleo que tinham é para pessoas pobres deslocadas de guerra, não para Directores ou Professores que são pessoas privilegiadas pelo Governo.
Mas esse patife americano se soubesse que o Governo Angolano há muito se exonerou das suas obrigações e principalmente para com os professores, aquele americano teria piedade de nós… Ele me disse assim, na qualidade de Director do II e III Níveis você é da minha classe social e somos iguais. Por isso é você que tem que dar comida aos pobres.
Quando o americano notou que eu estava aí plantado, feito estaca porque perdi força para sair daí ele descobriu algo errado se passa e deu-me a alternativa em inglês disse-me que estão a dar também o “food for work” ou seja “comida pelo trabalho”. Eu indaguei como aquilo funcionava e ele indicou-me um amontoado do lixo perto dos armazéns do PAM. Aquilo era uma autêntica geena de lixo: cães e gatos mortos em estado avançado de podridão enquanto vermes desfilam carcomendo os “restos mortais” de cães que escorrem em molho pestilento; lixos de toda ordem sublimando vapor e tresandando a pestilência. As moscas todas as moscas e de todos os tamanhos. Parecia ser a maternidade de todas as moscas da Africa. Parecia que aquilo era a cimeira de todas as moscas da Africa Austral.
Continuando o americano disse-me que estão a dar arroz e óleo em troca do trabalho: 5 Kg de arroz e 1 litro de óleo para 8 horas de duro labor no canteiro do lixo, movendo com as mãos os escorregadios cães mortos, gatos podres, bebés natimortos e atirados ao lixo pelas mães irresponsáveis e fingidas, afinal é a missão fundamental a de remover lixo para ganhar mais um bago de arroz. Para mim já era a caminho de 2 anos como professor sem nunca ter saboreado mais o arroz.
Então arroz já começava a entrar na lista dos mais majestosos meus sonhos…dizia comigo mesmo: “um dia que dormir com barriga cheia de arroz, este será o meu paraíso, e direi: “já posso morrer em paz porque vi a liberdade. Para o professor angolano, arroz é igual a FREEDOM. Eu perguntei ao americano: remover o lixo para onde? Ele disse: nos carros de lixo. E ainda insistiu: você precisa comida e quer trabalhar senhor Director? Eu disse, sofismando: você mesmo disse que eu sou senhor director e você também é Director do PAM. Estamos a falar de Director para Director e sendo meu congéneres e para comer arroz você se obriga a remover esse lixo?
Ele polido disse-me: “ o problema é que você é um Director que veio pedir comida e a regra da nossa comida só damos de graça aos pobres deslocados de guerra e para outras pessoas só se trabalharem e o trabalho que temos é remover o lixo daqui… your choice!!”
Rematou furibundo e começou a duvidar se eu era mesmo Director tendo em conta a debilidade física que eu apresentava. com minha camisa que voava com vento como se dentro não tivesse corpo, meu pescoço comprido como copo, cabelos e barbas abundantes por todo corpo tendo em conta a carência de gilletes para depilar…
Professor angolano não tem salário para comprar máquina de barbear usa mesmo a tesoura daquela de relvar para se barbear. Como director tive um professor (Prof Kangumbe) estava para se suicidar porque quando o salário saiu, encontrou um frasco de perfume muito grande, o maior que alguma vez já viu e comprou. Quando chegou em casa a filha mais velha, que já andou na cidade, disse-lhe que aquilo é “chertox” para matar baratas, mosquitos, marimbondos e outros insectos voláteis.
Ainda reprovou o pai: “ ó pai não verificaste que no recipiente tem desenho de baratas? O replicou à filha –“ó sua burra…tu sabes mais que o teu pai?!” Ele queria se matar revoltado consigo mesmo, porque é que com 34 anos de docência ainda confunde Chertox (insect Killer) com perfume. Ele tem razão, professor angolao não é a pessoa mais indicada para discernir perfumes, seu salário assim o proíbe. E quando é que conheceria perfume se não tem dinheiro para comprar sabão vai ter dinheiro de perfume?
Então despedi-me do Americano e envergonhado saí daí apertando as pálpebras para conter as lágrimas de dor, mas não consegui num canto bem próximo, os teimosos soluços e prantos me alucinaram, dada a minha sensibilidade, chorei amargamente.
Depois de enxugar as lágrimas comecei a rir sozinho, as malambas do professor em Angola, tendo os meus 19 anos de idade o futuro estava muito escuro, não obstante estar cheio de lindos títulos onde um Americano saciado, limpo, alegre, rico achou que por mim ser Director então somos iguais quando na verdade eu era “Director da Miséria” é por isso que fui compelido a remover gatos e cães mortos para ter 5 kg de arroz e um litro de óleo na qualidade de Director e Vice-Administrador Comunal. Será que o Governo sabe que existem directores de escolas e professores que passam esse tipo de humilhação? É claro que nosso Governo que mora nas estrelas e nunca desceu não sabe o que se passa aqui em baixo…
Quando voltei de mãos a abanar, ombros caídos para frente, joelhos tilintando, lábios secos e rachados, estômago roncando, tontura olhando com dificuldades, as pupilas pálidas, os colegas já não perguntaram mais o resultado da viagem: a desgraça estava estampada no meu rosto, graças a manha e cinismo, na altura do nosso Ministro da Educação que nós quando irritados chamávamos “ Bruto da Selva” quando na verdade o nome dele era Burity da Silva, porque na Opinião dele (o Ministro) nós professores, sem salários e que o capim mesmo para ruminarmos é que nos falta então nos sentimos mais encaixados no título de selvagem do que ele. Então eramos nós os “brutos da selva” não ele!
Como a guerra intensificou e os ataques eram frequentes as noites então eu como Administrador Comunal Adjunto e o meu Chefe Administrador propriamente dito, que também era meu aluno na 7ª Classe, decidimos militarmente falando, que todos os professores e professoras e alunos um pouco adultos tinham que pegar em armas para reforçar a Defesa Civil.
O comandante da Defesa Civil era um tal “feiticeiro e gabarola” chamado Kassunguminha. Todas as tardes Kassunguminha distribuía pós, amuletos, proclamava anátemas sagrados e despejava alguns líquidos em todos os caminhos de acesso a comuna e dizia que era para que se os soldados inimigos tentassem entrar na Comuna atacando-a a magia transformaria a comuna num lago de água ou em montículos de Salalé. Era mentiroso a procura de fama, porque os ataques eram frequentes.
O feitiço dele falhava sempre e ele pediu-nos a autorização para fuzilar todos os sobras acusados de colaboradores do inimigo sobretudo o Velho Kanhohã, a quem Kassunguminha usava como bode expiatório da falha do seu feitiço mas nós Administradores reprovamos a hostilização dos sobas e exigimos que aperfeiçoasse e treinasse mais as suas magias sempre falíveis. Todas essas funções é a Segunda Cabeça do Professor, nimbado nos problemas que afligem a comunidade envolvente.
Depois dessa experiência empobrecedora, materialmente falando, desgastante, ingrata, rústica, desalinhavada e sem objectivo nem finalidade apenas rotineira. Fiz uma introspeção profunda e me conscientizei que não tenho petróleo, não tenho diamante nem ouro. Não tenho dinheiro nem sou proprietário de terras.
A única coisa que tenho para vender e ganhar dinheiro e mudar de vida, é o meu conhecimento, a minha inteligência, o meu saber, a minha criatividade numa palavra, na minha mão não cairá nenhum pedacinho de riqueza que não tenha pensado, cogitado, meditado horas a fio.
Assim sendo, não me achei digno de continuar a trabalhar para Educação que me paga mal, com atraso de meses e um salário quase de escravatura que só chega para comprar 1 pare de sapato, peixe seco, rádio cassete e máquina fotográfica que actualmente estaria no preço de telefone laranjinha.
Decidi abandonar o sector de educação, engavetei os meus diplomas, despedi-me com profundo melindre dos meus amados alunos que no geral tinham sempre barrigas cheias enquanto meu estômago ronca de fome, gabava-me de ser o mais sábio, o contentor cheio de sabedoria na cabeça pendurada por cima das omoplatas magras, o cinto dava volta 4 vezes na cintura, as faces bambas, o português vernáculo sempre refinado e o Inglês é aquele da Inglaterra excepto o estômago vazio típico de Angola.
Quando abandonei o sector de educação para regressar à ADPP e depois a uma outra ONG que pagava dólares. Ouvi que a escola voltou a fechar porque nenhum outro técnico médio aceitou ir nos substituir, tendo em conta a experiencia puramente épica, dramática, dolorosa que reportamos.
Eu gostei muito de ter novo emprego e comecei a sonhar e fiquei sempre com frigorífico abarrotado de boa comida. E a minha vida nunca voltou a ser igual a da Hanha-do-Norte.
Ainda desloquei-me para lá visitar em cortesia o Delegado do MED em Benguela (João de Deus) e o meu chefe directo no Lobito "Chefe Lino Passassy"…ao me ver gordinho, brilhante, sorridente, fofo, sexy, exalando a perfume “Malbec absoluto” choraram, gritaram, lamentaram, me chamaram de herói e depois chamaram-me de traidor porque com a minha saída de lá o II e III Níveis voltaram a fechar…
E eu respondi assim: Angola é um Pais cuja longevidade é perene e superior aos seus filhos. Por isso, nossa relação com o Estado é uma relação de Poder baseada no CONTRATO SOCIAL E NÃO É CARIDADE.
O VERDADEIRO SERVIDOR PÚBLICO NÃO DEVE FAZE-LO POR PENA OU CARIDADE,
O Presidente da República não o-é por sentir pena dos angolanos ou lhes fazer algum favor. Mas porque é um cargo digno e cheio de regalias.
Então não podemos transformar professores em mendigos e miseráveis elegantes. Que sejam remunerados de forma justa e digna. Esse Memorando de Entendimento entre o MED e o SINPROF é um guia de traição aos professores, que continuarão na miséria enquanto as pessoas que o professor instruiu, educou e ensinou é ele o seu carrasco depois de ficar ministro, governador, deputado, General ou presidente.... a greve é um direito tão legal quanto o próprio trabalho do professor que deve ser bem remunerado....
O que foi o professor em 1975, 1980, 1990, 2000 continua a ser o professor em 2021. Nada mudou, o professor continua sendo, o trabalhador mais prejudicado, mais desrespeitado, mais empobrecido, mais abandonado, mais sacrificado, mais mentido, burlado e troçado.
Por isso o meu grito é: “PROFESSORES DE TODA ANGOLA UNI-VOS NÃO ACEITEM MAIS SER ATRAIÇOADOS COM BEIJOS DE JUDAS ISCARIOTE.
*Defensor dos direitos humanos e sindicalista
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