Luanda - Na sequência do que aconteceu no dia "27 de Maio" de 1977, no dia 28 iniciou a caça às bruxas. O João Mendonça irmão do Tilú Mendonça que era meu amigo e padrinho de casamento, ao cair da tarde foi avisar-me para fugir porque o Titú tinha sido preso. Eu disse-lhe que não ia fugir porque não tinha feito nada e nem sabia de nada. E para além do que vira e ouvira no dia 27, realmente não sabia rigorosamente nada!
Fonte: Club-k.net
A minha mãe disse-me para ir para a casa do meu tio Papo (Domingos Coelho da Cruz), um dos seus irmãos mais velhos que morava próximo de nós. Assim fiz. Passados poucos minutos a minha irmã Titina ligou para o tio a perguntar se eu estava lá e disse que uma patrulha da polícia (corporação a que eu pertencia) chefiada pelo Cunha tinha ido buscar-me com atitudes muito intimidatórias.
Na manhã seguinte muito cedo voltei para casa, a minha mãe disse-me para ir me apresentar, eu disse que preferia esperar que me fossem buscar, porque caso fosse a pé podia ser morta na rua. Ela disse-me "vai, não vai te acontecer nada, não quero voltar a ver o que vi ontem cá em casa". Fardei-me e foi andando até ao comando geral, apresentei-me e mandaram-me aguardar. Eu não sabia nem imaginava que estava presa.
Eu sou a primeira filha dos meus pais, estava casada há 7 meses e morava ao lado deles. O meu marido também militar, era piloto e estava na frente de combate e meu pai estava em Malange onde trabalhava. A minha terceira irmã tinha sido morta pelo marido em Março, há dois meses portanto. A minha mãe que já era cardíaca, com a morte da minha irmã ia constantemente parar ao banco de urgência com crises do coração.
Quando saí de casa deixei a minha mãe, as minhas quatro irmãs mais novas e os meus três sobrinhos órfãos.
Fiquei presa até Agosto, pesavam sobre mim graves acusações de coisas que eu nāo tinha feito. O meu inqueridor (Ferreira Neto) disse-me que tinha a cabeça a prémio e que negasse tudo que me perguntassem (verdade ou mentira) e assim fiz. Eu nāo temia pela minha vida, só estava preocupada com a minha família, pensando que se eu morresse a minha mãe também morreria, porque não aguentaria a morte de mais uma filha. Eu só pensava do que seria das minhas irmãs e dos meus sobrinhos. Este foi um dos momentos mais difíceis e marcantes da minha vida.
Mesmo a cair a minha mãe ia levar-me o almoço, eu sentia uma dor tão grande de pena dela que não conseguia ir ao portão buscar a comida e pedia para alguém fazê-lo. Até que um dia um agente detido do grupo da esquadra de Viana disse-me "camarada subinspectora, se não consegue olhar para sua mãe, pelo menos fique aqui na porta da caserna para que ela a veja e assim tenha a certeza que ainda está viva". E assim passei a fazer.
Ele tinha razão já tinhamos visto pessoas serem mortes a sangue frio pelo Cunha em plena luz do dia a tiro e a baioneta que cada um de nós só estava a espera da sua hora.
E hoje passados 44 anos o sr presidente da república numa operação de charme politicamente incorrecta e mais em jeito de pré-campanha e de branqueamento do MPLA do que de real e efectivo arrependimento, vem fazer aquele infeliz discurso para como sempre justificar a matança de mais de trinta mil pessoas durante dois, com requintes de maldade e crueldade porque eles também mataram?!
Quando é por demais consabido que os "comandantes" não foram mortos pelos fraccionistas e sim pelos seus próprios camaradas para aproveitamento político.
E todos aqueles que têm sido assassinados desde 1977 até aos dias de hoje mataram quem?
Perdão faz-se com verdade e justiça reparativa e não com embustes e faz de conta. Se o sr presidente e o MPLA pensam que assim o "27 de Maio" está resolvido, enganaram-se.
Um genocídio daquela envergadura onde foram cometidos crimes contra a humanidade, não deve nem pode acabar assim. Pessoalmente não sou a favor de vinganças nem do julgamentos ou condenações dos perpetradores, mas que se diga a verdade do que foi realmente aquilo, quem matou quem, como e onde foi enterrada ou atirada cada uma das vítimas. Só assim poderemos nos livrar desse pesadelo, desse fardo tanto violento que continua a assombrar e a perturbar as mentes, as almas e os corações dos que almejam por uma resolução esclarecedora desse dilacerante fenómeno que foi o "fraccionismo e que continua bem vivo para os sobreviventes e para aqueles cujos familiares desaparecidos continua por explicar.
Palmira Africano de Carvalho (Mirita)
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