Luanda - Preâmbulo: Um fenómeno que cresce de forma hercúlea aos olhos de todos, mas sem que se lhe dê a devida atenção institucional: os preços milionários que estão a ser praticados nas clínicas privadas bradam os céus num país onde a grande maioria da população jaz numa pobreza abjecta. É um problema de extrema gravidade que merece alguma reflexão e ponderação. Trago o assunto aqui neste espaço no intuito de encorajar as autoridades competentes para as acções que se impõem no âmbito da promoção da saúde para todos os cidadãos sem discriminação ou exclusão.
Fonte: Club-k.net
1. Uma palavra sobre o Sistema Nacional de Saúde (doravante SNS)
O SNS é uma estrutura organizacional de âmbito político-administrativo através do qual o Estado assegura o direito natural à saúde a todos os cidadãos sem excepção. O sistema inclui a promoção, prevenção, vigilância e controlo. Tem a ver, máxime, com a responsabilidade primacial que incumbe ao Estado a protecção da saúde individual e colectiva, a prevenção das doenças, o diagnóstico e tratamento dos doentes e a reabilitação médica e social. Tudo isso concorre para aquilo que se designa por cuidados integrados de saúde.
Em Angola, esses pressupostos estão consagrados na Lei 21-B/92 de 28 de Agosto (Lei de Bases do SNS). Logo no seu art. 1.º (Princípios Gerais) dispõe o seguinte: «O Estado promove e garante o acesso de todos os cidadãos aos cuidados de saúde nos limites dos recursos humanos, técnicos e financeiros disponíveis» (n.1)
Ao admitir esses ´´limites´´ a lei pretende deixar claro que o Estado não tem capacidade para atender a toda demanda sanitária do país. Daí a liberalização dos serviços de saúde para a iniciativa privada, virando assim a página dos anos do monopólio estatal (1975-1992) por força dos paradigmas ideológicos do socialismo real de tendência marxista-leninista que pretendiam transformar Angola num falanstério africano. Com a introdução das reformas político-económicas em Angola houve uma transição da economia planificada e centralizada para a economia de mercado. Nasce assim a iniciativa privada no sector da saúde, segundo o teor do n.3 da lei supracitada: «Os cuidados de saúde são prestados por serviços e estabelecimentos do Estado ou, sob fiscalização deste, por outros agentes públicos ou entidades privadas, sem ou com fins lucrativos.»
Apesar da descentralização e desmonopolização do sector da saúde, o Estado não se pode demitir das suas responsabilidades em garantir a protecção à saúde como um direito igual de todos os cidadãos, tendo estabelecido como linhas gerais da política de saúde em Angola, inter alia, «a promoção da igualdade dos cidadãos no acesso aos cuidados de saúde, seja qual for a sua condição económica e onde quer que vivam» (art.2.º, n.1, alínea b).
Segundo o estudo ´´Análise dos Índices de Qualidade do Serviço de Saúde prestado no Serviço Público e Privado de Angola´´ (in Journal of Human Growth and Development, vol.26, n.2, S. Paulo 2016) estima-se que apenas 30 a 40% da população angolana tem acesso aos serviços de saúde públicos e privados. Esse estudo reflecte a exclusão de grande maioria da população. Ora, se os serviços públicos que são gratuitos ou comparticipados ainda não chegaram à maioria da população, os serviços privados à partida não são para todos, mas para uma pequena franja da população.
2. O impacto social dos serviços privados de saúde
Os serviços privados de saúde são uma necessidade absoluta, tendo em conta os limites do Estado de que já aflorei supra. São neste caso, suplementares e não concorrentes do Estado. O Estado não pode ter concorrentes internos. Infelizmente, a liberalização que devia ajudar o Estado veio trazer outros problemas. A iniciativa privada no sector da saúde resvalou no patrimonialismo weberiano e na corrupção desenfreada de governantes e gestores dos serviços públicos de saúde. A liberalização e a terciarização dos serviços foi uma porta aberta para o enriquecimento ilícito dessa elite despudorada de mãos enluvadas cujos nomes estão associados a muitas clínicas privadas, laboratórios e farmácias. A promiscuidade de negócios – sem distinção entre os limites do público e os limites do privado - instalou-se dolosamente no sector da saúde com enormes prejuízos para o Estado.
A primeira incidência negativa foi o enfraquecimento, a erosão e a depreciação deliberados dos serviços públicos de saúde. Criou-se então a ´´ilusão´´ de que os serviços privados são os melhores equipados técnica, humana e financeiramente e, por consequência, aqueles que prestam os serviços de alta qualidade.
Curiosamente muitas clínicas, farmácias e laboratórios privados ou foram criados com dinheiros roubados ao Estado ou foram equipados com materiais desviados das unidades hospitalares dos serviços públicos. A promiscuidade de negócios é tão gritante que muitos gestores hospitalares acabaram por ser proprietários de unidades privadas, desviando sem escrúpulos para as suas farmácias fármacos e materiais gastáveis destinados aos hospitais sob sua gestão.
Outra incidência negativa, a razão desta reflexão, tem que ver com os preços milionários praticados em determinadas clínicas do país. Para além de serem preços escandalosos, são também uma barreira social que promove as desigualdades entre os cidadãos: os que podem pagam e salvam a vida; os que não podem não têm alternativa senão esperar serenamente que a morte resolva a sua situação. É assim que estamos! Esse problema ganha maior relevância e pertinência quando estamos diante de unidades construídas com os dinheiros do Estado. Cito aqui apenas alguns casos: a Clínica Multiperfil, a Clínica Sagrada Esperança (ambas com os proventos dos diamantes) e a Clínica Girassol (proventos do petróleo). A questão que tem de ser clarificada é: como é que essas três unidades de referência no país erguidas com o erário público passaram para o domínio privado? No âmbito do programa de recuperação de activos ora em curso a coberto da Lei 15/18, de 26 de Dezembro (Lei do Repatriamento Coercivo de Capitais e Perda Alargada de Bens) o Estado tem de clarificar o estatuto das mesmas para que os cidadãos saibam exactamente o que se passa. Com os preços milionários que estão a ser praticados nessas clínicas não é estranho que a própria Assembleia Nacional, um órgão de soberania, tenha dívidas acumuladas que acabam por comprometer a assistência médica aos Deputados e funcionários parlamentares. Já houve casos de recusa de prestação de assistência nessas unidades por força dessas dívidas.
Concluindo
O Estado está a falhar numa das suas tarefas fundamentais que consiste em conceber políticas que permitam tornar universais e gratuitos os cuidados primários de saúde (CRA, art.21, alínea f). O SNS enferma de muitas fragilidades estruturais que decorrem de políticas públicas erráticas e não atractivas no sector social. O Estado está, portanto, muito longe ainda de garantir protecção social a todos os cidadãos tendo em conta a mísera percentagem que o sector social recebe no OGE. As políticas actuais acirram as desigualdades sociais através de uma estratificação silenciosa, mas cada vez mais visível.
Diante disso, é preciso reforçar a capacidade humana, técnica e financeira dos serviços públicos de saúde para que sejam sempre mais atractivos e mais acessíveis a todos os cidadãos. Os serviços públicos não podem continuar a ser ´´o parente pobre´´ do SNS. Os serviços privados são importantes, mas carecem de uma fiscalização e controlo mais sérios, pois em muitos casos vendem gato por lebre quando os cidadãos gastam tudo o que podem para salvar a vida e em casos mais extremos essas clínicas transferem os pacientes para as unidades públicas. É preciso que o Estado ponha um freio no sentido de transformar esses sorvedouros de dinheiro em parceiros privilegiados do Estado, dentro dos limites da lei e da ética. A saúde e a educação são os principais barómetros do desenvolvimento humano integral de uma Nação.
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