Luanda - Ainda sobre a última deliberação da ERCA, gostaria de retomar o tema, que tem efectivamente pano para fazer muitas mangas, começando por dar por resolvida a dúvida anterior que tinha manifestado em relação ao artigo que consagra pela primeira vez o crime sobre o atentado à liberdade de imprensa no que toca à responsabilidade solidária do Estado, quando o infractor for uma instituição ou um agente que esteja ao seu serviço.
Fonte: NJ
Alguém, cujo reparo eu desde já agradeço, esclareceu-me que esta questão da responsabilidade solidária está perfeitamente resolvida, tendo até dignidade constitucional, no artigo 75º da CRA 2010, que trata da “Responsabilidade do Estado e de outras pessoas colectivas públicas”.
Refere a abrangente norma que “O Estado e outras pessoas colectivas públicas são solidaria e civilmente responsáveis por acções e omissões praticadas pelos seus órgãos, respectivos titulares, agentes e funcionários, no exercício das funções legislativa, jurisdicional e administrativa, ou por causa delas, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para o titular destes ou para terceiros.”
Reza ainda o mesmo artigo que “os autores dessas acções ou omissões são criminal e disciplinarmente responsáveis, nos termos da lei”.
Por tudo quanto os agentes do Estado têm feito em Angola em matéria de pequenos e grandes atentados à liberdade de imprensa, para ficarmos só por estas violações, adivinha-se facilmente que o Executivo estaria hoje em muito maus lençóis financeiros, se o poder judicial já tivesse o nível de independência e autoridade que é recomendável num Estado Democrático de Direito, até como uma das garantias das liberdades e direitos fundamentais.
Aliás, parece-me ser esta a garantia mais sólida que o próprio Estado tem para oferecer a todos os angolanos em relação ao compromisso que tem com a promoção e o respeito das liberdades e direitos fundamentais, o que ainda está mais no discurso/marketing político, pois até agora nunca tivemos um processo em que o Estado/Executivo tivesse sido processado e condenado a indemnizar seja quem for por este tipo de violação.
Como novidade desta segunda abordagem iniciada aqui na edição anterior do NJ, trazemos para este artigo de opinião a problemática da descriminalização da intervenção dos jornalistas no exercício da sua actividade profissional, quando entram em conflito, nomeadamente, com os direitos de personalidade de terceiros podendo ser acusados da prática de crimes como a difamação, a injúria e a calúnia que protegem a honra e o bom nome de todos.
Esta preocupação estende-se aos crimes tipificados na lei como sendo de “abuso da liberdade de imprensa” e que fazem parte do artigo 224, onde podemos constar que o Código condena a pena de prisão até 6 meses ou multa até 60 dias quem, por meio da comunicação social proceder:
“a) Ao incitamento à prática de crime ou a apologia de facto criminoso;
b) À divulgação de informações que incitem a secessão do país, a criação de grupos organizados de crime, ódio racial, tribal, étnico e religioso e a apologia às ideologias fascistas e racistas;
c) À promoção dolosa de campanha de perseguição e difamação, através da divulgação sistemática e contínua de informação falsa sobre factos, atitudes, desempenho profissional, administrativo ou comercial de qualquer pessoa;
d) À divulgação de textos, imagens ou som, obtidos por meio fraudulento;
e) À publicação intencional de notícias falsas.”
Não tendo o Parlamento acolhido o princípio da descriminalização da actividade jornalística propriamente dita, como já era mais ou menos previsível, apesar da campanha levada a cabo pelo Sindicato dos Jornalistas Angolanos (SJA) convém, entretanto, destacar que o novo Código Penal já cria algumas excepções que, de algum modo, vêm ao encontro desta necessidade da justiça conferir um outro tratamento mais específico ao desempenho da actividade jornalística no contexto da protecção dos direitos de personalidade.
Em relação ao crime de difamação que é aquele que, normalmente, os jornalistas mais são acusados de cometerem no exercício da sua actividade, o Código não pune o agente sempre que:
“a) A imputação do facto ofensivo for feita para realizar interesses legítimos;
b) Fizer prova da verdade dos factos ofensivos imputados;
c) Tiver tido fundamento sério para, agindo de boa-fé, considerar verdadeira a imputação.”
Nestas três alíneas enquadra-se perfeitamente o tratamento de excepção positiva que deve ser dado à actividade jornalística desde que, exige a lei, o profissional faça o que estiver ao seu alcance para se informar sobre a verdade dos factos, contrariando assim a acusação ou a suspeita de ter agido de má-fé.
Em relação aos crimes de abuso da liberdade de imprensa as coisas são bem mais complicadas para os jornalistas na eventualidade de um profissional ser acusado de publicar “intencionalmente notícias falsas”, sendo este um território onde as areias só podem ser movediças, ficando tudo a depender, de algum modo, da apreciação final do magistrado judicial.
Não sendo possível definir o que é uma “notícia falsa”, a abordagem terá de ser sempre casuística, pelo que terá de ser feito, permitam-nos a sugestão, algum “investimento democrático” no seio da própria magistratura seja a judicial, seja a do Ministério Público, no sentido de termos os nossos juízes e procuradores mais disponíveis para a lidarem com este tipo de conflito à luz tanto das liberdades como das responsabilidades.
Temos de reconhecer, como já o fizémos noutras ocasiões que, lamentavelmente, a má-fé continua a animar/motivar alguns conteúdos informativos que povoam os nossos médias, no âmbito das famosas encomendas que tanto podem vir de fora, como serem resultantes de alguma delinquência mais endógena, que se pode estar a agravar nos últimos tempos com a entrada em cena das redes sociais e do denominado jornalismo digital onde vamos tendo conhecimento todos os dias do surgimento de mais um “projecto”, sem qualquer idoneidade editorial.
Importa aqui esclarecer que o novo Código Penal condena com pena de prisão até 1 ano ou com a de multa até 120 dias por crime de difamação, “quem, por qualquer meio de expressão ou comunicação e com intenção de ofender, imputar a outra pessoa, ainda que sob a forma de suspeita, factos ou, sobre ela, formular juízos ofensivos da sua honra e consideração ou os reproduzir, para que terceira pessoa tome ou possa tomar conhecimento dos factos imputados ou dos juízos formulados, é punido.”
No Código anterior e com uma pena de prisão até quatro meses e multa até um mês, o crime em causa era cometido se alguém difamasse “outrem publicamente, de viva voz, por escrito ou desenho publicado ou por qualquer meio de publicação, imputando-lhe um facto ofensivo da sua honra e consideração, ou reproduzindo a imputação”.
Na legislação que vigorou até este mês de Fevereiro, quando fosse admitida a prova da verdade dos factos imputados, a mesma só era aceitável para os servidores públicos e estritamente circunscritas às suas funções.
Quando se tratasse de uma pessoa particular e a imputação fosse de um facto criminoso, a prova admitida em juízo teria de ser resultante da sua condenação definitiva.
Em relação ao crime que se consuma com a produção de gravações, fotografias e filmagens ilícitas, o Código também isenta de pena se “a imagem da pessoa fotografada ou filmada estiver enquadrada em fotografia ou filmagem do lugar público em que tenham decorrido.”
A mesma isenção é extensiva a “fotografia ou a filmagem se justificar pela notoriedade pública da pessoa fotografada ou filmada, em razão do cargo que ocupa ou da actividade que desenvolve”.
No crime de perturbação e devassa da vida privada a nova legislação também contempla uma excepção se tal interferência “for praticada como meio adequado para realizar um interesse legítimo relevante”, embora aqui eu entenda que o legislador pensou sobretudo em proteger as escutas telefónicas e outro tipo de vigilância praticadas pelos distintos aparelhos policiais, com ou sem mandado judicial.
(Jornalista/Membro do CD da ERCA)
(Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Novo Jornal)
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