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quinta-feira, 3 de junho de 2021

27 de Maio: Como foram exterminados os oficiais da nona brigada

Luanda - Porque perdoar não significa passar um mataborrão sobre a memória das pessoas e sobre os acontecimentos de 27 de Maio de 1977, que pretendemos que não se voltem a repetir no país, aqui fica, de exemplo, um relato sobre a brutal "operação de limpeza' da antiga Nona Brigada de Infantaria Motorizada, cujos integrantes foram acusados de ter sido o principal braço militar de apoio a Nito Alves.

Fonte: Severino Carlos

Tirado do livro “HOLOCAUSTO EM ANGOLA – memórias de entre o cárcere e o cemitério, págs 92 a 95. O autor, Américo Cardoso Botelho, português, foi preso quando estava ao serviço da Diamang, nos anos de 1975 e 1976, sob acusação de espionagem. Passou três anos nas cadeias da Casa de Reclusão e São Paulo. E, a partir dessas instalações, foi uma testemunha privilegiada do horror que milhares de angolanos viveram por conta dos funestos eventos de Maio de 1977.

UMA NOITE NO MINISTÉRIO DA DEFESA

Era uma dessas noites pós-27 de Maio. No Ministério da Defesa encontravam-se Onambwe, director nacional da DISA, e Dimuca, que chefiava as investigaçõed gerais da Comissão Militar de Inquérito. Também lá estava o conhecido torturador Carlos Jorge.


À noite é enviada uma ordem para a sede da DISA: “Preparar viaturas para missão muito importante na barra do Cuanza”. Da sede da DISA seguem cinco jipes para o Ministério da Defesa. Entram pelas traseiras que dão para o edifício da Missão Militar Soviética. Aí aguardam. A chefia pertence ao futuro capitão Tino. As viaturas levam bidões de gasolina e os soldados estão armados com automáticas ‘Akas’. Desta missão toma parte Moisés, ex-aluno da Casa Pia de Lisboa, cuja família era oriunda da Guiné-Bissau, e que me informou de grande parte destes acontecimentos.


Onambwe e Dimuca vêm à porta confirmar que tudo está como foi pedido. Dirigem-se a uma das salas do rés-do-chão onde esteve a antiga Companhia dos Comandos do QG português. As portas abrem-se. Dentro estão cerca de trinta oficiais descalços, de mãos amarradas atrás das costas e em roupa interior. Todos eles apresentam ferimentos graves. Há caras tão inchadas que já não é possível ver os seus olhos. O ‘espectáculo’ surpreende os próprios agentes da DISA.


Como se poderá adivinhar, eram militares acusados de participar no golpe de 27 de Maio. A selecção para o fusilamento era da responsabilidade de Carmelino Pereira. Mas tal correspondia à política do MPLA: o extermínio de toda a oficialidade de Luanda e da 1a Região Militar foi a maneira de garantir que nenhum dos traidores escapasse. Isto apesar de os oficiais terem insistido na sua inocência e esclarecido que apenas cumprirsm ordens superiores. Não esquecer, em relação a estes factos, que Neto havia, precisamente, anunciado que não seria justo “utilizar o processo habitual” e que, portanto, iria ser ditada uma sentença adequada. Estes processos sumários foram, por conseguinte, sancionados ao mais alto nível.


Pelas 22 horas, são prontamente deslocados para as viaturas. O cheiro a gasolina anuncia a morte. Eles têm agora a certeza de que vão morrer. Solta-se, então, o seu desespero e um coro de choro e gritos invade aquela noite: “Deixem-nos, ao menos, despedir das nossas famílias... das nossas mulheres... dos nossos filhos”. Entre os gritos ouvem-se os nomes das mães, das mulheres, dos filhos. Já as viaturas haviam passado o plano marginal do muro alto do Ministério e ainda se ouviam estas vozes do desespero. Alguns agentes da DISA choram, entre os quais o próprio Moisés que partirá com muita renitência. Os 70 km que separam Luanda do local escolhido na barra do Cuanza foram desgastantes: o choro, as súplicas, os gritos. O rosto dos militares que os acompanhavam exprimiam a sua estupefacção e o seu silêncio não iludia o constrangimento e a inominável repulsa que os habitava. Ontem, eram disciplinados e valentes chefes militares; hoje, condenados que choram como crianças. Um dos militares tinha mesmo um primo entre os condenados, facto que ilustra bem a arbitrariedade desta execução (nota 1).


[Na Cadeia de] São Paulo, no pós-27 de Maio, as noites que eram vandalizadas por vozes de chamamento traziam um medo impronunciável. Não só porque esse horizonte pendia sobre a cabeça de quase todos, mas também porque, na organização destas procissões de condenados, reinava frequentemente a arbitrariedade. Pense-se nos casos em que as vítimas foram levadas e assassinadas por engano, ou naqueles outros casos em que, sobrando espaço nas viaturas, os carrascos regressavam às celas para, a olho, seleccionar mais algumas vítimas (é viva em mim a memória de Augusto Inglês, preso no 27 de Maio, que foi levado para a ambulância da morte em vez de um tal José Inglês, acabando por ser salvo ‘in extremis’ de tal confusão).


Por vezes o requinte era de tal que alguns dos algozes vinham para São Paulo contar com pormenor o que se tinha passado nos fuzilamentos. Refira-se um exemplo. Kapalakata e mais uns dezasseis condenados foram fuzilados por ordem do Tribunal. Ora, no dia seguinte, aquele mesmo que tinha ordenado o fuzilamento estava em São Paulo a contar como tudo se tinha passado perante o horror estampado no rosto dos ouvintes – diziam que esse método era do agrado dos dirigentes máximos do MPLA.

NA BARRA DO CUANZA

Chegam, por fim, ao local destinado. É noite cerrada. Uma clareira perto da estrada, uma barraca de apoio aos militares que guardam esta zona, e tudo o mais é deserto. Os prisioneiros são descidos das viaturas e a gasolina descarregada. As viaturas são dispostas de forma a iluminarem o sítio indicado pelo guarda militar local. Este policiamento local e permanente justificava-se pela frequência destas execuções (nota 3).


Tino levava instruções para fazer sofrer os condenados até aos limites da sua imaginação e experiência. E, de facto, Tino revelou-se um notável executor de tais instruções. Este é, sem dúvidas, um dos testemunhos mais eloquentes da violência arbitrária e brutal que o MPLA fez perpetuar no território angolano.
Com o pelotão de execução já alinhado, dirige a palavra aos condenados, como se de um julgamento se tratasse:


-- Camaradas, houve um golpe em Luanda. Determino que vocês, aqui perante mim, digam a verdade. – e acrescenta – Quem não disser a verdade será imediatamente abatido!
De seguida aponta para o primeiro e pergunta:
-- Fizeste parte do levantamento?
-- Camarada, eu fazia parte da 9a Brigada... – Responde este com a voz inundada de medo.
-- Camarada, eu não tomei parte em nada – afirma o segundo.
-- Ah! Não tomaste parte! Muito bem! – Ordena que este oficial seja colocado de costas para o mar e grita:
-- Fuzilar!


Os militares disparam. O barulho é ensurdecedor (por isso procuraram um local como este, descampado, com uma única testemunha isenta, o oceano). O terror aumenta no rosto dos oficiais. O corpo fuzilado cai no chão trespassado de balas. Sob as ordens de Tino o corpo é regado com gasolina e incendiado. Arde como um archote e incha como se de um balão se tratasse. Por fim rebenta, ardendo até ficar reduzido a cinza. O arrepiamento estampa-se no rosto dos próprios militares da DISA. Mas o aviso está feito:


-- Digam a verdade, caso contrário vai já acontecer o mesmo – vocifera Tino.


Seria difícil imaginar um processo de execução mais violento, sádico e, sobretudo, mais eficaz na fermentação do medo na consciência daquelas vítimas seleccionadas para este “abate”. A noite, a completa irracionalidade do interrogatório, os tiros, o sangue, a gasolina... adensaram o terror, fazendo desta antecâmara da morte um verdadeiro inferno. De facto, diante de tudo aquilo que viram e ouviram, todos optaram por confessar o que lhes era pedido. Porém, quando o último se acusou, logo recomeçou a execução; a morte tinha sido adiada por poucos minutos. Foram mortos um a um, para que cada um fosse obrigado a ver na morte dos companheiros, prelúdio da sua própria. No fim, depois dos “ritos” das balas, seguiu-se o banho de gasolina e a respectiva cremação dos corpos num autêntico gesto de ostentação do horror. A pá lançou os últimos resíduos ao mar, selando o destino trágico desta geração angolana de oficiais e procurando calar qualquer evidência que denunciasse estes fuzilamentos.


Por agora tinha acabado, mas no dia seguinte a sessão continuou. Moisés, entre outros elementos da DISA, tentaria esquivar-se a este serviço certamente por acharem que aquelas modalidades de fuzilamentos se revestiam de uma desumanidade insuportável.


NOTAS:

1. Inferno, motorista e amigo de Agostinho Neto, dizia que por várias vezes militares haviam sido forçados a matar os seus familiares. Inferno tinha pertencido ao MPLA no tempo da guerrilha pela independência. Depois passou a trabalhar no Palácio Presidencial.
2. Carlos Pacheco refere-se desta forma aos acontecimentos trágicos que aqui se descrevem: “Neto de certeza nunca soube quem, de facto, matou Bula, Nzagi e outros dirigentes encontrados dentro de uma ambulância; e também o que aconteceu com duas brigadas de elite, cujos soldados, durante a noite, em praias distantes de Luanda, foram trucidados um a um, na presença uns dos outros, num espectáculo de inenarrável terror, em que as vítimas, trespassadas pela loucura do medo, choraram até ao último instante, suplicando que as poupassem.” (Repensar Angola, Lisboa: Vega 2000, 118.)

 



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